O que podemos aprender com as cadeias de suprimentos humanitárias?

Reflexões no contexto da pandemia de COVID-19

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Nota divulgada em 23/03/2020

Os últimos eventos que vem ocorrendo, de forma global, como enchentes, desabamentos, altas temperaturas que alastram incêndios por toda cidade, pandemias etc., fazem com que repensemos as formas de estruturar a cadeia de suprimentos. As práticas tradicionais de gerenciamento não têm sido suficientes para que as organizações respondam aos eventos de rupturas e as tornam mais vulneráveis a interrupções das suas operações pelo desabastecimento dos recursos indispensáveis, gerando impactos econômicos e sociais vultosos[1].

Os impactos do novo coronavírus (COVID-19) possuem repercussões econômicas assimétricas gerando efeitos que ressoam no espaço e no tempo de modo distinto conforme o grau de sensibilidade e vulnerabilidade macroeconômica dos países e microeconômica das cadeias globais de produção e consumo[2].

Muito se pode aprender com a gestão de cadeia de suprimentos humanitária, que tem que ser capaz de responder à múltiplas intervenções, muitas vezes em escala global, o mais rápido possível e dentro de um curto espaço de tempo. Precisam, portanto, ser múltiplas, globais, dinâmicas e temporárias[3].

Às cadeias humanitárias são essenciais para atendimento das vítimas de forma rápida, a demora nessas operações, seja por falta de insumos, seja por intervenções assistenciais, podem gerar impactos nos desfechos da saúde das vítimas contaminadas.

E quais são as características das cadeias humanitárias?

As características das operações humanitárias trazem complexidades e desafios que passam por

●       imprevisibilidade da demanda

●       demanda súbita (grandes quantidades e prazos curtos, com ampla variabilidade de suprimentos)

●       altos riscos associados à distribuição adequada e oportuna

●       falta de recursos no momento do desastre (oferta, pessoas, capacidade de transporte, etc)

●       instalações permanentes e/ou temporárias ao longo da cadeia.

Van Wassenhove (2006)3

 

Mas quais são as diferenças entre a cadeia de suprimentos empresarial e humanitária? A segunda apresenta diversas particularidades que inserem as operações humanitárias em um ambiente complexo-adaptativo (ver Nota ‘As restrições para limitar a propagação do vírus são essenciais, mas precisam ser projetadas com cautela!’) e singular onde a amplitude das incertezas pode se estender até às condições da operação. De forma geral, caracteriza-se a logística complexa necessária para atender a população após esses eventos de ruptura como sendo a Logística Humanitária[4] . A “adaptação” dos níveis de serviço e custo no contexto de logística humanitária em cada fase do ciclo do desastre (evento de ruptura) está representado na figura abaixo [5].

Se analisarmos as circunstâncias que necessitam das operações humanitárias, a partir da ocorrência de um evento de ruptura, estas apresentam diversos fatores de pressão ao sistema, como as condições de trabalho das equipes da assistência, o estado físico e mental dos atingidos, os serviços interrompidos que dificultam o fluxo de suprimentos, acompanhamento das informações que chegam de múltiplos canais, entre outros aspectos  que exigem dos gestores atenção redobrada na  estruturação de cadeias humanitárias que auxiliem na minimização  das consequências desses eventos, a partir do planejamento e controle dos recursos necessários, além da agilidade das respostas para contenção de novas ocorrências.

Neste sentido, cada situação de ruptura pode exigir particularidades nas operações humanitárias, a seguir serão apresentados dois desdobramentos a partir dos conceitos Lean e Agile,  trazendo aspectos mais concretos para as fases de resposta ao desastre e restauração das condições iniciais daquela sociedade, que estão apontados na tabela abaixo, com adaptações ao contexto da ruptura da pandemia.

Cadeia de suprimentos Agile Cadeia de suprimentos Lean
1) Comunicação sobre a situação para as partes da cadeira;

2) Criação de rede com fornecedores;

3) Projeções (estimativas) e estoques de segurança;

4) Construção de um sistema logístico confiável, através da criação de uma rede estável com operadores logísticos (3PL`s);

5) Formação de uma equipe para implementar o plano de emergência.

1) Distribuição de recursos  e garantia de continuidade do atendimento aos afetados pela ruptura;

2) Extensão do cuidado: atender pessoas deslocadas internamente, garantir condições de prevenção à população e, em particular, às famílias vulneráveis;

3) Restabelecimento das atividades econômicas da região.

 

Fonte: Adaptado de Cozzolino et al. (2012)5

 

Fases diferentes do desastre presumem cadeias de suprimentos com características distintas e a combinação dessas características é fundamental para a eficiência e efetividade das ações de mitigação dos efeitos da ruptura na sociedade. O quadro conceitual abaixo sintetiza  as necessidades e práticas Lean e Agile para as fases de preparação, resposta e restauração (ou reconstrução) ao momento de ruptura.

Fonte: Adaptado de ZARY et al. (2014)[6]

A fase de mitigação abrange atividades para impedir que o desastre aconteça ou reduzir seus potenciais efeitos[7]. Essa fase habilita a discussão de uma terceira configuração de cadeia de suprimentos humanitária na fase de mitigação: a resiliente.

Para alcançar a resiliência da cadeia de suprimentos é fundamental que as organizações tenham flexibilidade em situação de ruptura para criar outras alternativas de resolução dos problemas. Existem 5 formas de manifestação da flexibilidade: (1) Redesenho – capacidade da cadeia de enxergar outras opções pelo recurso que está inviabilizando sua operação, ex: troca de fornecedor; (2) Alteração e criação de recursos – capacidade de modificar um recurso levando este a se tornar um recurso mais adequado ou compor diferentes recursos criando um novo, ex: treinamento e capacitação; (3) Priorização – optar por focar esforços em um ou alguns elementos por ser mais importante no momento; (4) Redundância, Disponibilidade e Robustez – existência de folgas ou possibilidade de utilizar recursos além do definido inicialmente; (5) Eliminação – exclusão de processos, recursos ou atividades que inviabilizam o objetivo ex.: eliminação de regras ou burocracias 1 .

As discussões apresentadas reforçam a necessidade das organizações estruturarem suas cadeias de forma que estas permitam outras maneiras de adaptação das suas operações, em casos de ocorrência de eventos não planejados, sendo estes cada vez mais frequentes, e que sejam capazes de dar respostas ágeis a estas ocorrências. E o mais importante, que estas organizações consigam desenvolver sistemas que saiam deste estágio pandêmico com retorno ao seu estado anterior ou com capacidade superior, a partir das experiências aprendidas.

 

Autoras

Ana Carolina Vasconcelos
Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/0065556144974235

Luana Ramos
Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/4379840548786456

 

Coordenação do LEGOS|UERJ

Profa Thaís Spiegel, DSc. | thais@eng.uerj.br
Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/8880192361495671

 

Nota técnica divulgada em 23 de março de 2020.


 

[1] PEREIRA, Susana Carla Farias. A importância da flexibilidade para a formação da resiliência em cadeias de serviços: um estudo em caso de saúde. 2015.

[2] SENHORAS, Eloi Martins. “Novo coronavírus e seus impactos econômicos no mundo.” Boletim de Conjuntura (BOCA) 1.2 (2020): 39-42.

[3] VAN WASSENHOVE, Luk N. Humanitarian aid logistics: supply chain management in high gear. Journal of the Operational research Society, v. 57, n. 5, p. 475-489, 2006.

[4] Thomas, A., & Kopczak, L. R. (2007). Life-saving supply chains – challenges and the path forward. In H. L. Lee & C.-Y. Lee (Eds.), Building supply chain excellence in emerging economies (pp. 93-111). New York: Springer

[5] Cozzolino (2012)

[6] Zary, B., Bandeira, R. & Campos, V. (2014) The contribution of scientific productions at the beginning of the third millennium (2001–2014) for humanitarian logistics: a bibliometric analysis. Transportation Research Procedia, v. 3, p. 537-546

[7] Çelik, M., Ergun, Ö., Johnson, B., Keskinocak, P., Lorca, Á., Pekgün, P., & Swann, J. (2012). Humanitarian logistics. In New directions in informatics, optimization, logistics, and production (pp. 18-49). INFORMS.

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